Matéria produzida por:
Michael Serra
Fontes de apoio:
O Livro dos Mortos do Antigo Egito. Ramses Seleem. Editora Madras – 2005.
The Book of the Dead. Wallis Budge. – Sacred Texts.
BALANÇA DA MALDIÇÃO
As cenas por detrás do golpe Balança da Maldição do Espectro Pharaoh são, como é explicado no mangá/ova, representações da balança sagrada da justiça, onde o coração da pessoa julgada é contrabalançado ao peso de uma simples pluma – a pluma da verdade de Maat. Caso o coração seja mais pesado que essa pena, a pessoa é condenada – na técnica do guerreiro, especificamente, morta.
INTRODUÇÃO
O julgamento de Maat em si é muito conhecido pelos admiradores da mitologia egípcia – facilmente reconhecem essa cena. Todavia, vamos aqui estudá-la um pouco mais a fundo e revelar suas origens e significados.
Primeiramente, as cenas em questão são reproduções quase totalmente fiéis a um (e somente um) papiro clássico das tradições egípcias: O Papiro de Ani. Existem alguns outros papiros que tratam do mesmo assunto, como o Papiro de Hunefer, que, entretanto, não são tão similares em seus hieróglifos e desenhos, como é, a bem da verdade, o de Ani. Pode-se conferir isso com estas imagens:
São ilustrações do já citado Papiro de Hunefer e de um monumento retirado dos Vales dos Reis, em Gizé. Ambas retratam a mesma coisa, o julgamento da alma pela pluma da verdade. Todavia, concentremos as atenções a este papiro, o Papiro de Ani:
Essa é somente uma parte de todo um rolo que tornou-se base para o que é mais conhecido como: O Livro dos Mortos do Antigo Egito (“The Book of the Dead”, ou ainda “The Book of Coming Forth by Day”). O Papiro de Ani hoje se encontra no Museu Britânico, em Londres, e somente fora traduzido no final do século 19 por E. A. Wallis Budge. Porém, acredita-se que fora confeccionado na época do Faraó Seti I, entre 1500 e 1400 anos antes de Cristo.
O CONTEXTO
É relatada nele a história de Ani, escriba oficial do Faraó (e autor do próprio papiro), e de sua esposa em uma jornada espiritual entre os três mundos em que os egípcios acreditavam (Ta, o mundo terreno; Duat, o mundo intermediário – purgatório; e Nut, o mundo superior – paraíso). Tudo isso representava a jornada de uma alma pelo ciclo das vidas até a junção final com os seres perfeitos que não precisam mais reencarnar.
O falecido entra no Amentet (“Local onde o Sol se põe”. É a entrada da terra dos mortos, região de Duat) com um papiro em suas mãos, escrito por ele com passagens de toda sua vida, e com uma espécie de mapa, oferecido por sacerdotes, que o guiaria pelo outro mundo. Uma tradição diz que Tehuty (Thoth, Tot, o grego Hermes) queimava tal papiro e pesava, na mesma balança da justiça, suas cinzas com as cinzas de seu próprio livro da verdade. Caso o peso fosse igual, a alma rumaria aos céus (fonte: Seleem, 2005). Mas enfim, a tradição em questão é outra, e o que se é pesado aqui é o próprio coração do morto. Continuemos com a trajetória do falecido no Duat…
Após chegar na ilha de fogo Neserser, a alma do falecido adentrará no Salão Duplo, o Salão da Verdade e da Lei. Nesse salão é que ocorrerá seu juízo que definirá seu destino.
“O falecido observa todas as ações praticadas na vida terrena como se estivesse vendo um filme e tem de decidir o destino de sua vida futura, baseando-se nas ações cometidas na vida anterior” (Seleem, 2005). Sim. Quem dita o julgamento é o próprio morto, expondo tudo o que fez e o que não fez em vida. Principalmente, tudo o que NÃO FEZ: As 42 confissões negativas:
01. Eu não cometi iniqüidades. | 15. Eu não saqueei a terra cultivada. | 29. Eu não cometi insolência. |
02. Eu não assaltei. | 16. Eu não agi com luxúria. |
30. Eu não exagerei. |
03. Eu não roubei. | 17. Eu não amaldiçoei ninguém. | 31. Eu não julguei precipitadamente. |
04. Eu não agi com violência. | 18. Eu não fiquei irado sem justa causa. | 32. Eu não cortei animais divinos. |
05. Eu não matei seres humanos. | 19. Eu não dormi com a mulher alheia. | 33. Eu não berrei em conversas. |
06. Eu não roubei oferendas. | 20. Eu não poluí a mim mesmo. | 34. Eu não cometi pecados. |
07. Eu não causei destruição. | 21. Eu não aterrorizei nenhum homem. | 35. Eu não amaldiçoei a realeza. |
08. Eu não pilhei dos templos. | 22. Eu não pilhei. | 36. Eu não desperdicei água. |
09. Eu não cometi falsidade. | 23. Eu não agi com raiva. | 37. Eu não agi com arrogância. |
10. Eu não roubei comida. | 24. Eu não fui surdo a necessitados. | 38. Eu não blasfemei. |
11. Eu não amaldiçoei. | 25. Eu não aticei brigas. | 39. Eu não agi com falso orgulho. |
12. Eu não transgredi. | 26. Eu não fiz ninguém chorar. | 40. Eu não agi com desdém. |
13. Eu não abati o rebanho divino. | 27. Eu não forniquei. | 41. Eu não enriqueci ilicitamente. |
14. Eu não fiz o mal. | 28. Eu não destruí meu coração. | 42. Eu não desprezei as tradições. |
E existem somente dois destinos que o julgamento pode traçar, dois caminhos espirituais: um, o de condenação, leva a reencarnação, e o outro, chamado Rastau, leva a alma ao Jardim dos Juncos (Sekhet-Earu, termo que deu origem ao Campos Elísios, dos gregos), situado no Campo da Paz (Sekhet-Hetep). Sekhet-Earu se encontra na constelação de Órion, enquanto Sekhet-Hetep, além de Órion, abrange também Touro e Leão.
O Paraíso final, absoluto, se encontra na constelação da Ursa Maior, onde habitam os Grandes Enéadas (os 9 princípios, ou deuses primordiais egípcios, a saber: Chu, Tefnut, Geb, Nut, Osíris, Hórus, Set, Ísis e Néftis).
Dito isso, nos concentremos no julgamento em si…
O JULGAMENTO DE MAAT: INTEGRANTES
Vamos explicar os elementos desse quadro:
Na parte superior aparecem 12 divindades sentadas em dez postos. São elas, da direita para a esquerda: Harmachis (outra acepção de Hórus-Rá), Atum, Chu, Tefnut, Geb, Nut, Isis e Néftis (juntas), Hórus, Hator, Hu e Sa (juntos). Elas representam as 12 maiores leis, das 42 leis naturais.
Abaixo, de branco, estão Ani e sua esposa, prostrados em referência. Já na cena da balança, as duas mulheres juntas são deusas do nascimento Meskhenet e Renenet, testemunhas da vida de Ani. Mais acima delas se encontra uma ave com cabeça humana. Se chama Ba e significa literalmente “alma”, simbolizando as almas de Ani e sua esposa.
A direita de Ba temos uma espécie de caixa com uma cabeça protuberante, chamada Mesxen, que Wallis Budge supunha ser “algo relacionado com o local de nascimento dos falecidos” – pois a raiz do nome se assemelha a deusa do nascimento Meskhenet. E logo abaixo, uma figura humana que representa o destino, o resultado daquele julgamento, seu nome é Shai (literalmente: Sorte).
Em cima da balança vemos um pequeno macaquinho com cabeça de cachorro. Este ser mitológico é chamado Cinocéfalo, em grego, ou Aani, em egípcio, que tem o nome pessoal de Astenus. Está diretamente ligado a Tehuty/Thoth – aquele homem escriba com cabeça de íbis à direita (logo mais volto a ele) – sendo assim seu averiguador da justiça (como se verificasse que a balança não foi adulterada).
Abaixo da balança, no lado direito, temos Enpu, mais conhecido como Anubis, o deus dos mortos e do embalsamento. É ele que efetuará o julgamento do coração da alma com a pena de Maat. Já que estamos falando da pena, um detalhe: Certas tradições apontam a pena como sendo do deus do vento e dos ares Chu, sendo a pluma um atributo de sua leveza (e assim somente a balança seria de Maat).
Por fim, temos duas figuras, o já citado Tehuty/Thoth, que ali desempenha um papel de uma espécie de escrivão, retratando com fidelidade tudo o que ocorre. , e um monstro híbrido de crocodilo, felino e hipopótamo chamado Ammut/Ammit/Amemet, literalmente “o devorador de mortos” que representa a destruição do corpo mortal daquela alma, pois é notório que os egípcios acreditavam que sua vida eterna seria junto ao seu corpo terreno – ainda que em certos mitos o entendam como o devorador de almas mesmo, enfim…
O JULGAMENTO DE MAAT: O TEXTO
(os deuses Maat, Anubis e Tot – imagens wikipédia)
Aqui vai o texto traduzido por mim do inglês. Do trecho da placa III originalmente traduzido por Wallis Budge. A voz do texto é de Tehuty/Thoth, que narra os acontecimentos para o deus do submundo (Duat) Osíris.
“Oh Osíris, o escriba Ani disse: “Meu coração, coração de minha mãe. Meu coração, coração de minha mãe, coração de minha existência! Possa nenhuma resistência incorrer sobre mim em meu julgamento.
Possa nenhuma repulsão originar-se contra mim por parte dos juízes divinos (Tchatcha). Possas tu não estar separado de mim na presença daquele que opera a balança da justiça. Tu és meu Ka (um dos nove “espíritos” do corpo humano, responsavel pelo pensamento e o ego) em meu corpo, o que me forma e fortalece meus membros.
Que sigas adiante ao lugar da felicidade onde residirei nos anos vindouros. Que possam os Shenit (classe de deuses) não se enojarem de meu nome, e que mentiras não possam ser ditas contra mim na presença de deus”.
“Bom é isto de se ouvir”. Thoth, o correto juiz da grande companhia de deuses que estão na presença do deus Osíris disse: “Ouça agora este julgamento. O coração de Ani na verdade foi pesado e sua alma foi testemunha dele; Foi encontrada no contrapeso verdades sobre suas experiências. Lá não foi encontrada nenhuma perversidade. Ele não deixou de ofertar nos templos; Não causou dano em suas ações; Não causou nenhum mal enquanto vivo na face da Terra”.
O conjunto de deuses responde à chamada de Thoth: “Aquilo que saiu de sua boca vale como lei. O Escriba”…
Aqui, subitamente, o texto se encerra. Faltam trechos do papiro. Todavia, em outros capítulos se percebe que Ani, triunfante, é agora sagrado, pois não pecou nem cometeu maldades que valessem contra ele. Não foi dado ao devorador Ammut/Ammit/Amemet. E ofertas de comida e boas vindas foram oferecidas na presença do deus Osíris, que lhe garantiu moradia eterna em Sekhet-Hetep, junto aos seguidores de Hórus.
O JULGAMENTO DE MAAT: SAINT SEIYA
Na trama de Saint Seiya, e especialmente com o Espectro Pharaoh, o contexto da Balança foi deturpado. Realmente para uma maldição, coisa incabível na religião/mitologia do Egito antigo. Todavia, a moral que Kurumada nos passou no julgamento executado por Rune atinge em cheio um ponto crucial da antiga concepção (lembremos que até mesmo os antigos gregos, como Homero e Hesíodo estudaram no Egito). O julgamento em si se baseia, preponderantemente, em tudo o que o falecido NÃO FEZ em vida. Como os dez mandamentos cristãos, os egípcios possuíam aquelas 42 regras. Caso falhasse em alguma dessas 42 normas (ditadas por 42 deuses), o falecido não poderia alcançar o paraíso.
Kurumada, naquele julgamento de Rune, enfatiza o lado contrário: tudo de “bom” e “apropriado” que as pessoas podem fazer em vida, ainda que tenham cometido deslizes, por vontade própria ou mesmo inconscientemente. Algo que por si só também pode ser comparado a essa “Maldição de Julgamento”.
Sobre a fidelidade das imagens. Muitas alterações ocorreram nos hieróglifos, quase nenhum bate com os originais. No mangá, ao menos, aparece o nome do Destino “Shai” ao lado de seu desenho junto à balança, coisa que no OVA foi omitida.
Um outro detalhe interessante, é que nessa imagem acima, a direita, vemos o monstro Ammut/Ammit/Amemet à esquerda da balança, junto ao coração. Sendo que no original ele está a direita e mais distante. Penso eu que isso se deva à “Maldição” do Pharaoh. Ou seja, como o coração, que sempre esteve a esquerda da balança, fora julgado e condenado, Kurumada mudou a posição do monstro (somente nessa cena) para simbolizar que ele destruiria o coração de Seiya.
Eu fico aqui me perguntando… como o Kurumada dava conta de pesquisar tanta coisa e ainda desenhar? Fora as dezenas de outras obrigações!
É preciso muuuuuuito empenho, estudo, pesquisa. Uma simples coisinha, como o golpe de uma personagem, pode ter uma grande história por trás!
Ótimo texto, como sempre! o/
Porque ele não fazia tudo sozinho. Ele tinha uma equipe de assistentes e há indícios de que ele contava com ajuda até pra pesquisar nomes de golpes e etc. 😉